‘Sou livro sem letra’, diz poetisa de 86 anos ao entrar pela 1ª vez em escola

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Ela aprendeu a ler e escrever escondido e via aulas do lado de fora da sala.
Após morte de marido, idosa criou 5 filhos trabalhando em roça e carvoaria.

A poetisa Regilda Pereira Simões da Silva tem 86 anos de idade e nunca tinha entrado em uma escola. A contradição existe porque quando criança ela era proibida de estudar – aprendeu a ler e escrever escondido com a ajuda de dois irmãos. “Quem nunca estudou é um livro sem letra”, diz a idosa, em referência aos próprios versos: Eu sou um livro sem letra / Eu sou um jardim sem flor / Sou remédio sem receita / Um colorido sem cor.

Ela entrou em uma sala de aula pela primeira vez esta semana. Em uma escola de Caruaru, no Agreste de Pernambuco, a idosa leu poesias para alunos do ensino fundamental, foi aplaudida e ficou emocionada. “Estou vivendo na velhice o que não vivi na minha infância”.

Quando era criança ia para a escola onde os irmãos mais velhos estudavam e, do lado de fora do prédio, ouvia atenta às lições da professora. Antes do final da aula, corria do local para não ser vista.

Regilda conta que nunca entrou em uma sala de aula porque “não era permitido” para as meninas. “Eu nunca tive o direito de estudar”, relembra. Aos seis anos de idade, quando saía correndo para não ser vista pelos estudantes, ela diz que cantarolava as vogais.

O interesse em aprender foi notado pelos imãos – que a ajudaram. Regilda contou que eles ensinavam para ela o que aprendiam na escola. “Mulher não tinha direito de estudar. ‘Para que mulher aprender a ler?’ Era o que diziam para mim e para todas”, relembra.

Além da ajuda dos irmãos, contou também com a própria força de vontade. “Eu pegava um lápis, naquela época era uma pena, molhava na tinta e todo o papel que via, eu ia cobrir as letrinhas”.

Quando adolescente, ela diz que recebia cartas de uma amiga do Rio de Janeiro. “Ela mandava para mim e eu cobria por cima da letra dela, foi assim que fui aprendendo ao longo dos anos”. A caligrafia também a ajudou a aprender a escrever. “Tinha um livro bem grande de caligrafia. Era uma coisa muito boa, com letras bem feitas. Eu ia tentando, tentando até conseguir”.

Mãe de cinco filhos, o primeiro marido morreu e ela se viu sozinha para cuidar das crianças. Precisou trabalhar na roça e fazer carvão. Durante a entrevista, explicou que “era uma vida muito sacrificada” e pediu para falar pouco sobre o assunto.

“Era tão difícil porque a pessoa fazia, botava fogo, às vezes incendiava. Quando ia ver, só tinham as cinzas. O trabalho ia todo embora”. Ela só casou novamente quando os filhos já estavam adultos e diz que só aceitou o pedido do pretendente porque “sentia muita solidão”.

A vida de dificuldades fez com que ela escrevesse um diário. Nele escrevia sobre tudo, as angústias do passado. “Falei no diário que queria não ter nem nascido, que queria ter nascido morta, que queria ter sido um aborto. Como pode a pessoa nascer e ter uma vida sacrificada como a que eu tive?”. Ela conta que os filhos encontraram o diário e esconderam.

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Cordel despertou interesse

Proibida de estudar, Regilda absorvia o que podia apenas ouvindo. Enquanto escutava os cordeis lidos por um tio no sítio onde moravam, em Quipapá, no Agreste, ela decorava as histórias contadas em rimas.

“Tinha um tio, da parte do pai, que lia muito bem. Todo domingo eles se reuniam e iam ler folheto de cordel. Eu ficava ali admirando. E eu decorava só de ouvir. Ainda hoje me lembro de alguns cordeis”, relembra a idosa.

Apesar da facilidade com as letras, os números não eram bem-vindos para a poetisa. “A família via que eu tinha aprendido. Eles mesmos se admiravam pela minha facilidade. Só tinha uma coisa que eu não decorava: era conta. Não entrava na minha cabeça. Ainda hoje não entra”, relembra.

De analfabeta a poetisa

Surgiu. Assim ela descreve como iniciou a escrever poesias e poemas. “Um dia cheguei em casa, sentei e comecei a escrever. Desse negócio de poesia, já comecei adulta”. Ela contou que no começo escrevia sempre à noite. Os textos são sobre o filho – que está paralítico há 17 anos – ou sobre “qualquer coisa que me toque o coração”.

Regilda disse que começa a escrever, mas nem sempre termina as poesias. Todas as obras são guardadas em uma caixa, em folhas soltas. “Começo e deixo para lá. Não sei por que, só sei que algumas eu não quero terminar. Mas, muitas que tenho feito, falam das coisas da vida ao meu redor. Eu aprendi a ler mais nos olhos das pessoas, vendo o caráter, do que nos livros. O meu colégio é o mundo, a natureza”.

Trechos de obras

“Deus fez o homem de barro
Com coração de criança
Com a saliva dos seus lábios
Deu voz, sabedoria e confiança
Com o sopro deu-lhe a vida
Deus transformou em seguida
À sua imagem e semelhança”.
“Eu não sei se vou pra lua
Lá é um cárcere privado
Só são dois que chegaram lá
E ficaram encarcerados”.
“Dizem que tem sete luas
Só quatro se fazem presentes
Lua cheia, Lua Nova,
Lua Minguante e Lua Crescente
Escolhe pra ir à Lua
Pessoa eficiente
Quando a Lua se esconde
Onde fica tanta gente?”.

“Eu sou um livro sem letra
Eu sou um jardim sem flor
Sou remédio sem receita
Um colorido sem cor
Nado num rio sem água
No peito não tem mágoa
Sou a fonte do amor

Eu sou um dia sem sol
Sou a noite de luar
Sem ter ninguém ao redor
tenho uma estrela a brilhar”.

Fonte: g1.globo.com